A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, conhecida como a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, substituiu e atualizou as legislações anteriores, incluindo a Lei nº 8.666/1993, a Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei nº 12.462/2011). Esta reformulação legislativa não foi meramente incremental, ela representou uma reestruturação significativa dos princípios e processos que regem as licitações e contratações públicas no Brasil.
A nova lei foi concebida com múltiplos objetivos, visando modernizar os procedimentos, aumentar a eficiência, garantir mais transparência, e fortalecer a fiscalização e o controle sobre os gastos públicos. Além disso, buscou-se adaptar-se às novas demandas do mercado e às tecnologias emergentes, proporcionando maior flexibilidade na escolha das modalidades de licitação e na execução dos contratos.
Entre as principais inovações da Lei 14.133/2021 destacam-se a introdução de novas modalidades, como, por exemplo, o diálogo competitivo; o reforço na importância do planejamento e da gestão dos contratos; além de mecanismos de controle e transparência.
Dentro desse contexto renovado, os mecanismos de controle e transparência assumem um papel crucial. Sendo a impugnação de editais e os pedidos de esclarecimento, dois dos mais importantes, como iremos observar no presente estudo.
A impugnação permite que qualquer cidadão ou interessado conteste formalmente um edital de licitação que apresente irregularidades ou não esteja em conformidade com a lei. Serve como um controle preventivo, permitindo correções antes que a licitação ocorra. Com isso não apenas previne futuros litígios e atrasos no processo, mas também garante que os recursos públicos sejam utilizados de maneira mais eficaz e ética possível.
Já pedidos de esclarecimento não possuem o condão de contestar as cláusulas do edital e de seus anexos. São questionamentos formais feitos por interessados para resolver dúvidas ou obter mais informações sobre termos e condições do edital.
Tais pedidos contribuem para um entendimento claro dos requisitos da licitação, reduzindo as chances de propostas inadequadas ou a necessidade de realização de novo processo licitatório. Também promovem a igualdade de condições entre todos os concorrentes, uma vez que todos terão a mesma compreensão dos requisitos do edital, respeitando assim, os princípios da isonomia e da ampla competição.
Por meio da impugnação, fornecedores e outros interessados podem apontar erros ou omissões nos editais, contribuindo para que sejam mais claros e completos. Isso ajuda a garantir que os contratos atendam às necessidades reais da administração pública e do interesse público.
No paradigma da Lei nº 14.133/2021, a administração pública deve assumir que não tem o controle absoluto dos processos licitatórios. O parágrafo único da referida lei traz que a alta administração deve adotar algumas práticas com o intuito de: “alcançar os objetivos estabelecidos no caput 1deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.
Uma dessas práticas a ser adotada é o diálogo aberto entre os órgãos públicos e os fornecedores. A troca de informações relevantes entre particulares e Administração promove um ambiente mais íntegro e confiável, assegura uma competição mais equitativa e auxilia a contratações mais eficientes, conforme determina a lei.
Essa comunicação, entretanto, não se finda na provocação através dos recursos funcionais da impugnação e do pedido de esclarecimento por parte do licitante ou de qualquer interessado. É importante também que o órgão, ao ser questionado, responda de maneira célere às questões e às dúvidas diminui, assim a probabilidade de disputas legais dispendiosas e atrasos na implementação de projetos essenciais ao atendimento de políticas públicas.
Por essas razões, é muito importante compreender e utilizar corretamente essas ferramentas operacionais que fortalecem a governança e aprimoram a eficácia das políticas públicas implementadas por meio de contratações públicas.
Fundamentação Teórica
A impugnação do edital é uma manifestação formal e fundamentada apresentada pelo licitante ou qualquer pessoa interessada, que objetiva questionar ou contestar cláusulas ou condições do edital de licitação. Este instrumento é essencial para assegurar que o procedimento licitatório seja conduzido em conformidade com os princípios e normas da administração pública.
Isso porque, o instrumento de impugnação, assim como o pedido de esclarecimento, é uma ferramenta que possibilita que o órgão público faça um edital dentro da legalidade, sem irregularidades e obscuridades, garantindo que ele sirva ao seu propósito, de regular todo o certame público de forma eficaz.
Para isso é fundamental também, que ao elaborar a impugnação ao instrumento convocatório, o interessado não apenas aponte irregularidades, mas também indique a maneira correta de como corrigi-las.
Praticamente, tem-se que as exigências do edital devem limitar-se a possibilitar a demonstração de que o fornecedor, em sendo vencedor, estará apto a entregar o objeto da contratação. De sorte que as cláusulas editalícias não podem extrapolar o razoável, de maneira a resultar em diminuição da competitividade e violação do princípio da isonomia.
Soma-se a isso a ampla legitimidade, trazida pela norma, para impugnar editais. Estendendo-a a qualquer cidadão, não apenas aos participantes diretos do processo licitatório, a lei permite uma maior participação da sociedade civil no controle e na transparência das contratações públicas, inibindo, com isso, práticas corruptas.
No mesmo sentido, a Instrução Normativa nº 73/2022 que regulamenta a norma geral em âmbito federal, traz, em seu caput, redação similar ao artigo 164 da Lei14.133/21. Detalha procedimentos específicos relacionados às impugnações e pedidos de esclarecimento, orientando os órgãos públicos sobre como devem proceder para garantir conformidade com a lei e, principalmente, como responder adequadamente aos questionamentos e às solicitações.
Nos seus parágrafos do artigo 16, a IN73/22 dispõe sobre o prazo e a divulgação das respostas aos pedidos de esclarecimentos e as impugnações pela Administração; sobre a republicação do edital, em caso de acolhida a impugnação e ainda, dispõe que a impugnação não suspende automaticamente o procedimento licitatório.
A concessão da suspensão do processo licitatório em virtude de impugnações é medida excepcional e para ser concedida, tem que ser motivada pelo agente de contratação nos autos do processo de licitação. Isso porque, como dito mais acima no presente artigo, é preciso equilibrar a necessidade de correção de possíveis irregularidades com a necessidade de não atrasar indevidamente o processo de licitação e suas consequentes contratações públicas.
Em relação a publicidade da resposta, a IN traz que deve ser disponibilizada de forma pública, em sítio eletrônico oficial, assegurando que todos os interessados tenham acesso às mesmas informações. Mais uma vez, observa-se que as normas que regem a matéria, baseadas nos princípios administrativos, trazem disposições que possibilitam que a Administração evite passar informações desiguais e ou conflitantes e como consequência que todos os licitantes possam preparar suas propostas com base em um entendimento claro e uniforme do edital e seus anexos.
É fato que a IN 73 visa orientar as unidades administrativas federais, entretanto, é inegável, também, o seu importante papel, como subsídio normativo que serve de norte para as demais esferas federativas, sendo necessárias, apenas, adaptações à realidade local.
A compreensão do espírito da nova lei, voltado para governança, planejamento e diálogo entre o público e o privado, juntamente com as regulamentações adicionais e a jurisprudência, proporciona uma base sólida para aplicarmos esses mecanismos operacionais em vistas de promover um ambiente de licitação mais justo, competitivo e transparente no Brasil.
Na prática, o que impugnar em regra?
Como visto, a norma especifica que a impugnação pode ser realizada por irregularidades relacionadas à aplicação da Lei 14.133/2021. Isso inclui, mas não se limita a violações aos princípios de licitação, inadequações nos critérios de julgamento, ou falhas na definição do objeto licitado.
Esses vícios no edital e ou no termo de referência, que vão desde especificações técnicas impróprias até o descumprimento dos princípios licitatórios, podem ser melhor verificados se fizermos um paralelo com o artigo 62, caput, da Lei 14.133/21.
Neste artigo, a norma define a habilitação como “a fase da licitação em que se verifica o conjunto de informações e documentos necessários e suficientes para demonstrar a capacidade do licitante de realizar o objeto da licitação, dividindo-se em:(…)”.
Do conceito acima, nota-se que a lei, seguindo a disposição constitucional contida no inciso XXI do artigo 37, de que só serão permitidas exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, traz que os documentos e informações para a habilitação deverão ser apenas: necessários e suficientes.
Na mesma linha, os artigos seguintes do Capítulo VI da lei, relativos à habilitação, fornecem diretrizes e limites acerca dos documentos que podem ser exigidos no Edital e seus anexos.
Assim percebe-se que há tanto na legislação constitucional, como na infraconstitucional um delineamento acerca de como e quais documentos e exigências podem estar contidos no edital.
Em termos práticos, tem-se alguns exemplos de exigências que são mais corriqueiras no dia a dia das contratações públicas. Podemos citar alguns: especificações excessivamente restritivas, obscuridade em relação aos critérios de julgamento e desproporcionalidade na descrição do modo de execução do objeto.
Especificações restritivas, como por exemplo, de marcas e modelos, fora das hipóteses autorizadas por lei, mediante justificativas violam os princípios da isonomia. Podem configurar práticas corruptas de direcionamento e restritivas da competitividade, o que as tornam ilícitas, passíveis, portanto, de impugnação.
Critérios de julgamento com termos vagos, imprecisos, por sua vez, impossibilitam que os licitantes preparem propostas que atendam de forma mais eficaz aos objetivos da Administração para a contratação do objeto.
O modo de execução do objeto afeta diretamente os custos considerados na elaboração da proposta de preços. Dessa forma, uma exigência irrazoável pode inviabilizar a participação de bons fornecedores.
Visando evitar que tais exigências e disposições contidas no edital sejam ilícitas comprometendo o bom andamento do certamente, a legislação e a jurisprudência trazem como balizamento os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
É de fundamental importância que esse balizamento seja observado pelos atores participantes do mercado de compras públicas, seja pelos agentes públicos quando da elaboração do edital ou quando da análise do instrumento convocatório pelos licitantes.
Esses exemplos citados, demonstram como a impugnação de editais e os pedidos de esclarecimento funcionam como ferramentas importantes para assegurar a legalidade, a eficiência e a transparência nas licitações públicas. A Lei 14.133/2021, ao facilitar tais práticas, promove uma maior integridade e competitividade nos processos de contratação pública, alinhando-os com os melhores interesses tanto da administração pública quanto dos fornecedores.
Entretanto, para que esses mecanismos atinjam seus objetivos a contento é imprescindível que a peça de impugnação e ou a de pedido de esclarecimentos seja objetiva e direta, apontando a irregularidade, a fundamentação e a correção. Deve, também, incluir a documentação que deu suporte a alegação e ser bem estruturada, com identificação do impugnante, do processo licitatório, preliminar de tempestividade, fundamentação jurídica e técnica, pedido e conclusão.
Desafios e Benefícios
As possíveis consequências da impugnação ao instrumento convocatório são: a anulação ou retificação do edital, caso julgada procedente, ou a rejeição da impugnação.
Nas hipóteses de anulação ou retificação do edital, a administração pública deve corrigir as irregularidades apontadas, podendo inclusive anular o edital e reabrir o prazo para a apresentação das propostas.
Em sendo considerada improcedente, o edital é mantido conforme publicado originalmente. Nesse particular é necessário que a Administração justifique o porquê da improcedência para que não incorra em nulidades que podem resultar na anulação de todo o processo licitatório, acarretando prejuízo ao erário e inclusive, gerando possíveis sanções para os agentes públicos.
A administração deve levar em consideração as informações trazidas pelo impugnante, pois o objetivo é solucionar problemas e garantir a legalidade do processo e não apenas determinar nulidades e buscar punições.
Nesse sentido, inclusive, a jurisprudência recente dos órgãos de controle ao tratar do tema acerca da tempestividade, já se posiciona no sentido de que a Administração analise a peça impugnatória. A justificativa desse posicionamento reside no estímulo a uma boa prática administrativa, e visa assegurar o cumprimento dos princípios da transparência e da responsabilidade.
Outros fundamentos para tal posicionamento são: o direito de petição e a exigência legal de responder aos questionamentos dos particulares.
O direito de petição assegurado no artigo 5º, inciso XXXIV, da Constituição Federal, garante a todos, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Não há na Constituição, nenhuma limitação de prazo para tanto. Estando presente os requisitos de defesa de direitos, combate a ilegalidade ou abuso de poder, o direito de petição estará posto.
A resposta da Administração às impugnações e aos pedidos de esclarecimento é também um direito de todos e um dever dos Poderes Públicos. Por isso, a solução apresentada pela Administração deve ser substancial, não meramente formal. Ela deve abordar todas as questões levantadas de maneira concreta, fornecendo justificativas claras para a aceitação ou rejeição das objeções apresentadas pelos cidadãos.
Por outro lado, não se pode desconsiderar, outro princípio de extrema relevância para as licitações e contratos administrativos que é o da vinculação ao instrumento convocatório.
O princípio da vinculação ao instrumento convocatório é corolário do princípio da legalidade e da objetividade das exigências do edital, impõe à Administração e ao licitante a observância das normas estabelecidas no Edital de forma objetiva, ficando a ele estritamente vinculados.
O princípio da vinculação ao instrumento convocatório decorre dos princípios da isonomia e da impessoalidade, e deve ser conjugado com o propósito de garantia à obtenção da proposta mais vantajosa ao Poder Público.
A partir desse comparativo, e da conceituação apresentada, há de haver uma ponderação desses princípios. Sopesar o direito de petição e de resposta do cidadão (1) e o princípio da vinculação ao instrumento convocatório (2). Partindo da análise dos bens jurídicos tutelados, quais sejam: garantir a ampla competitividade do processo licitatório (1) e assegurar segurança jurídica para o licitante e para o interesse público (2) se decidir quais devem prevalecer perante o caso em questão.
A integração desses princípios e obrigações reforça a gestão pública como um sistema aberto, onde a interação entre os Poderes Públicos e os particulares é fundamental para o sucesso das políticas públicas.
Por fim, o grande desafio a ser enfrentado encontra-se na ausência de resposta às impugnações e aos pedidos de esclarecimento.
Nesse cenário, algumas medidas são passíveis de serem adotadas, mas sempre de maneira cautelosa, com o objetivo de resolver a situação irregular perpetrada pela Administração e não buscando o prejuízo pessoal de determinado servidor.
O objetivo é corrigir irregularidades, solucionar problemas e garantir a continuidade do certame para benefício de todos os envolvidos.
Em caso de não haver resposta administrativa aos pedidos e as impugnações formulados, restando-se inerte, portanto, a Administração, podem ser realizadas representações e ou denúncias ao próprio órgão realizador do certame, ao Tribunal de Contas referente ao ente e até mesmo ao Ministério Público.
É importante dizer que essas denúncias devem ser bem fundamentadas e conter a identificação do denunciante pois o escopo dessas medidas não é apenas obter uma resposta satisfatória ao interesse do licitante, mas também, ajudar a promover uma governança pública que seja participativa, transparente e eficaz.
Conclusão
Este artigo abordou a prática da impugnação e o pedido de esclarecimentos de editais sob a ótica da nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), desvendando como este mecanismo, frequentemente mal compreendido e subestimado, desempenha um papel crucial no aprimoramento dos processos licitatórios. A impugnação, longe de ser um obstáculo burocrático, emerge como um instrumento essencial para a promoção da legalidade, competitividade, transparência e moralidade nas licitações públicas.
A Lei 14.133/2021 projetada sob o modelo gerencial e visando a aplicação dos fundamentos da governança nas contratações públicas, fomenta o diálogo entre os fornecedores e a Administração Pública. Isso gera a possibilidade de correção de possíveis erros e omissões nos editais de licitação antes que eles possam causar efeitos adversos, e garante que tais processos reflitam as necessidades reais da Administração e as condições de mercado.
A lei e a jurisprudência buscam dissipar o mito de que contestações ao edital possam prejudicar os licitantes, mostrando, pelo contrário, que tais ações são, na verdade, incentivos para a melhoria contínua dos procedimentos licitatórios.
O estudo revelou que a intenção do legislador com a Lei 14.133/2021 foi clara: fomentar um ambiente de cooperação entre o setor público e o privado e incentivar uma concorrência mais leal e um mercado mais dinâmico e inovador. Isso consubstancia a eficiência e a eficácia nas contratações públicas e assegura que as políticas públicas implementadas por meio dessas contratações sejam mais bem-sucedidas e alinhadas com as necessidades e expectativas da população.
Em conclusão, a impugnação de editais, conforme o novo espírito trazido pela Lei 14.133/2021, é fundamental para o desenvolvimento de um processo licitatório que seja transparente, justo e competitivo. Este mecanismo é um exemplo de como o direito administrativo, quando aplicado de maneira inclusiva e transparente, pode servir não apenas como um meio de regulamentação, mas como um facilitador para a melhoria e a inovação na administração pública. Portanto, é essencial que tanto fornecedores quanto órgãos públicos vejam a impugnação não como uma ameaça, mas como uma oportunidade para aprimorar o sistema de licitações no Brasil.
Referências Bibliográficas
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